Karla Reis

Karla Reis

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Heterônimo

Eu não sei me descrever e sequer imagino por que diabos me pediram pra fazer isso. De qualquer forma, me chamo João Massich. Nome brasileiro e sobrenome russo herdado do meu pai, que, assim como eu, não é grande homem e deve passar os dias numa cadeira de balanço. Tenho cinquenta e tantos anos. Cinquenta e oito, se me lembro bem.

Nasci em primeiro de abril, na capital do país. Na verdade, na periferia da capital. Não tenho irmãos e no começo meus pais até tentaram pagar uma boa escola para mim, mas o pouco-caso que fiz com os estudos, fez com que os dois mudassem de opinião. Tanto faz como tanto fez, que concluí a vida acadêmica – e demorei longos dezessete anos para isso – em uma escola pública em que os professores faziam tão pouco-caso quanto eu. Pra mim, aquilo era um alívio. O meu instinto autodidata me instruiu automaticamente assim que aprendi a ler e a escrever. O resto foi uma tortura.

Um dos poucos momentos bons dos quais me recordo daquela época, tem a ver com um soco. Acertei a cara daquele gordo com toda a força que pude. Já não tinha amigos, aquilo fez com que me deixassem ser o esquisito em paz. No começo até me esforcei pra conseguir chegar perto ao menos de alguma garota que não fosse tão estranha quanto eu, mas não obtive sucesso e me contentei com a professora de matemática ou qualquer outra mulher que me chamasse atenção, por muitos anos, apenas em pensamento.

Aliás, acho que um ser vive daquilo que pensa. “Penso, logo existo”. Pensei a vida toda que conseguiria viver sozinho. Decidi que sairia de casa ao atingir a maioridade quando, pela enésima vez, meu pai me trancou no quarto, me bateu e, diferente das outras vezes, não chorei. Eu tinha chegado da escola cheirando a tabaco mas não tinha chegado perto, até aquele dia, de nenhuma droga. Tentei argumentar e foi em vão, foi aí que decidi escrever.

Hoje eu fumo os cigarros que meu dinheiro pode comprar e bebo aquilo que as moças dos balcões solitários me oferecem. A minha família é católica, mas o meu Deus é aquele – ou aquilo – que eu quero que seja nas linhas que escrevo. Gosto de ter ciência dos medos e riscos que me cercam. O conhecimento do fracasso e do que há de pior no ser humano que não pensa e não busca conhecimento, me poupe de andar no mesmo caminho. Posso ser um velho moribundo, sozinho e sem muito o que viver ainda, mas estou certo de que morrerei aliviado por saber que conheci ao menos um pouco de tudo que pude.

Uso a verdade para escrever e conseguir alguns trocados, algumas mulheres e algumas bebidas. Levo a vida assim. De mentira, já me basta o dia em que nasci.


- Karla Reis.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Let it be!